sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Mulheres do Brasil
PERITA EM DESVENDAR CRIMES
ÚNICA MULHER EM TODO O PAÍS A ATUAR NO SETOR DE MICROSCOPIA ELETRÔNICA DO INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, SARA LENHARO É RESPONSÁVEL PELA ANÁLISE DE OBJETOS QUE POSSAM INDICAR SUSPEITOS

O acesso é restrito e a sensação de quem entra no Instituto Nacional de Criminalística (INC) da Polícia Federal, em Brasília, é a de estar num filme de suspense ou no seriado americano CSI: salas e corredores protegidos, portas que se abrem somente com identificação pessoal, equipamentos de última geração e um certo ar de mistério. Sara Lenharo, 47 anos, coordenadora do setor de microscopia eletrônica no Departamento de Balística do INC, estuda os projéteis, os tipos de arma, os vestígios. Tudo na tentativa de transformar indícios em provas.

Há cinco anos, ela deixou uma carreira consolidada como geóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) para prestar concurso na Polícia Federal. "Eu queria um novo desafio. A pesquisa era o que mais me encantava na universidade, e a nova carreira me oferecia a possibilidade de usar a teoria para solucionar crimes", conta. Considerada hoje uma das mais respeitadas peritas da Polícia Federal, Sara foi responsável pela modernização do laboratório de microscopia. Comprou equipamentos com componentes exclusivos - negociados por ela diretamente com a fábrica. "Na época em que foram trazidos para o Brasil, há quase dois anos, nem o FBI tinha um microscópio com tantos recursos", afirma. Ela se refere ao microscópio eletrônico de varredura (MEV), que tem capacidade de aumentar até 300 mil vezes o material analisado e de revelar, em pouquíssimo tempo, a composição química de cada partícula. Os microscópios ópticos, em geral, aumentam uma amostra entre 40 e 100 vezes apenas. O MEV faz em um minuto a análise detalhada de fragmentos encontrados no local do crime, como pedaços de tecido, resíduos de pólvora, sangue etc., permitindo uma tomografia completa das amostras. "Quando tive carta branca para importar os microscópios, não pensei duas vezes. Fui responsável por um gasto de cerca de 1,6 milhão de dólares, é muito dinheiro", conta ela. "Com os novos equipamentos, mudamos o rumo de investigações importantes. É a tecnologia fazendo a diferença."

A eficiência do microscópio eletrônico de varredura, a menina-dos-olhos da balística, vem sendo testada diariamente, e alguns casos desvendados graças a ele ganharam repercussão na mídia. Em outubro de 2007, correspondências contendo um pó verde foram enviadas para embaixadas de 20 países em Brasília. O pó chegou ao INC e foi direto para o microscópio. Em apenas dez minutos, a análise estava pronta e confirmou-se que não era nenhuma substância tóxica, arma química ou biológica, como se temia, e a polícia divulgou nota à imprensa. "Naquele dia, houve muita apreensão entre os peritos. O departamento de microscopia realmente parecia cenário de filme: roupas especiais contra radioatividade, máscaras, corre-corre e angústia por não sabermos com o que estávamos lidando", recorda Sara. "Felizmente descobrimos em poucos minutos que não se tratava de uma arma química ou de uma substância perigosa e nociva. É muito gratificante saber que meu trabalho contribuiu para isso!" Atualmente Sara e sua equipe trabalham, entre outros casos, na investigação da responsabilidade dos acidentes aéreos da Gol e da TAM. Para tanto, conta também com outra máquina trazida para a Polícia Federal, o microdifrator de raios x, que facilita, principalmente, investigações de fraudes e falsificações. Com ele, é possível verificar a composição da tinta em análises de obras de arte, a sobreposição de traços em documentos e a estrutura dos materiais. Quando há roubo de quadros famosos e ocorre a recuperação das obras, o departamento de Sara é um dos que atesta a autenticidade delas.

TRAJETÓRIA NA PF
Paulistana formada pela Faculdade de Geologia da Universidade de São Paulo, com especialização no Japão e doutorado na Austrália, Sara não foi direto para o departamento de balística quando entrou para a Polícia Federal, em 2002. No primeiro ano foi para Roraima, onde aprendeu a atirar e, apesar de ser perita, realizou muito trabalho de campo, cumpriu mandados de busca e apreensão, fez revista em suspeitos nas ruas e atuou como agente federal. Solteira por opção, sem filhos, ela garante estar satisfeita com a nova carreira. "Se pudesse voltar atrás, faria tudo de novo. Meus irmãos, meus sobrinhos, minha tia, todos vibram com meu trabalho", diz, orgulhosa. A mãe, já falecida, chegou a ver o sucesso da filha. É com a família ou pintando que Sara passa as horas de lazer. "Sempre pinto e também cuido de plantas, me faz bem. E pratico muito exercício físico. Vou diariamente à academia, mas não sou nenhuma Kate Marrone (policial do seriado americano As Panteras)", conta, rindo.

ROTINA DE FILME
O dia-a-dia de detetives modernos como Sara, que se empenham com a ajuda da ciência forense (uso da tecnologia para facilitar a resolução dos mais diversos crimes), daria um belo roteiro de filme. A perita não atua apenas diante dos microscópios. Ela compõe a elite da polícia científica no país e, além das viagens em missão e dos cursos e palestras que ministra no Brasil e no exterior - em 2007, por exemplo, esteve no Chile dando um curso sobre balística para agentes federais daquele país -, faz estudos e análises que exigem conhecimentos não apenas teóricos. No túnel de balística, construído no prédio do INC para testes de velocidade e trajetória dos projéteis de armas de fogo, Sara, de arma em punho, é quem realiza os disparos. "Eu ando armada sempre, mas felizmente nunca precisei empunhar a arma fora de uma missão e espero não ter de fazê-lo", afirma, cautelosa. Ela evita locais de risco. "Já aconteceu de eu errar o caminho no centro de São Paulo, à noite, e ficar angustiada. Não tem valentia nessas horas. Há muito folclore em torno da nossa profissão. Nos laboratórios, quase tudo lembra os filmes ou seriados policiais, só que a vida real não é cenário e nem sempre há o final feliz da ficção."

Aliás, num país em que apenas 3% dos crimes são solucionados, a realidade fica muito distante da ficção. Sara orgulha-se dos casos que conseguiu ajudar a resolver e não esconde que a maior frustração é saber que um crime ficou sem solução, seja por falta de provas ou de suspeitos. "Quando se fala em solucionar crimes, muita gente fantasia, há pirotecnia demais. Nosso trabalho é exaustivo, minucioso e há também os casos fantásticos que conseguimos resolver. Aí, sim, parece fazer sentido aquela máxima de que não há crime perfeito."

Destruição de documentos
A microscopia eletrônica no setor de balística dá a palavra final em casos de laudos divergentes e já mudou o rumo de investigações importantes, como no caso da destruição dos documentos da ditadura militar na Base Aérea de Salvador. O laudo da polícia baiana afirmava que os documentos não haviam sido queimados na sala da Base Aérea, onde havia manchas escuras na parede. Outros laudos atestavam que a queima havia ocorrido na sala e que as manchas eram indícios do incêndio criminoso. Sara, então, analisou amostras da parede e do chão e comprovou que a queima não ocorrera naquele local. As manchas tinham sido provocadas por fungos, não continham nenhuma espécie de fuligem.

Resíduos de armas de fogo
O microscópio eletrônico de varredura permitiu a Sara desvendar o caso do general do Exército brasileiro Urano Bacelar, que morreu no Haiti. Ela atestou que havia resíduos de disparo de arma de fogo nas mãos e na boca do militar. Já no Paraná, houve o assassinato de um procurador, e os indícios conduziam a vários suspeitos. Antes de ser atingido por arma de fogo, o procurador tivera os pneus do carro perfurados. Sara ajudou a analisar os inúmeros canivetes e punhais que vieram do sul do país e, em uma das armas, encontrou resíduos do pneu do carro do procurador. O dono da arma foi preso e acabou confessando o assassinato.

Análise de cofres
Outra investigação curiosa foi a que comprovou fraude em uma licitação de cofres. A empresa que venceu a licitação cobrou preço alto, alegando que os cofres fornecidos eram caros por serem os únicos que tinham na composição um elemento que dificultava arrombamentos. Amostras do material dos cofres foram analisadas na microscopia eletrônica da PF e nenhum componente, além de cimento, foi encontrado. O setor de balística comprovou a licitação fraudulenta.

Origem de pedras preciosas
Outra função importante de Sara é verificar a procedência de pedras preciosas. Atualmente, ela analisa os diamantes apreendidos na Reserva Indígena Roosevelt, região em conflito desde 2004, quando 29 garimpeiros foram supostamente mortos por índios. Muitos garimpeiros, empresas e índios chegam com diamantes dizendo que as pedras são de outra localidade. Para apurar a responsabilidade dos intensos conflitos, o primeiro passo é saber a real procedência das gemas - o que Sara consegue fazer com os equipamentos da microscopia eletrônica.

POR ALESSANDRA ROSCOE

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